terça-feira, outubro 24, 2006

O efémero





" Efémero é o humano. Efémero é estar exposto ao que os dias trazem." - António de Castro Caeiro in Píndaro, Odes Píticas

O que fazer da realidade e dos dias concretos que nos envolvem? Que dizer dela e da finalidade dos nossos dias finitos, tantas vezes inadequadamente aproveitados?
Ah, a realidade... sim, essa coisa baça que nos rodeia. A verdade e a mentira, os desesperos, os claros e os escuros do escorrer dos dias e das horas.
As verdades tecidas entre os dedos, teorizadas, abstratizadas, impoderáveis, insustentáveis na leveza do ser.
As mentiras, designações pejadas de anticorpos, aprendemos algum dia a defender-nos delas, assimilando-as como tecido morto que atiramos fora como dejectos?
Sofremos com as verdades e somos derrubados pelas mentiras. Já Kant dizia "um mundo sem mentiras não podia ser habitado por seres humanos".
Se a chuva lava as pedras lisas das ruas que pisamos poderá a verdade pelar a nossa alma, despindo casca a casca, camada a camada, retirando o que não necessitamos para nos esconder?
Esconder-nos-ìamos mesmo assim? Ou seria de nossa escolha viver ainda na mentira se esse cobertor negro nos aquecer, nos confortar?
Vivemos fora e dentro nesta asfixia, neste paradoxo, estamos no zénite da verdade baloiçando no limiar de uma qualquer tosca mentira, porque nela aprendemos a viver, é a nossa casa.
Escolheríamos abandonar um lar absurdo e vil porque a verdade nos libertaria? Optaríamos pelo dia se a noite, demasiado escura, não nos ensinasse mais o caminho para os olhos dos outros?
Somos nós que mentimos ou são os outros a quem não contamos a verdade que nos levam a construir metáforas de qualidade duvidosa, alimentando assim este interminável carrocel de corações botos?
Não sou capaz de conclusões, demito-me de as considerar. Preplexa destes amplexos do efémero do ser, teço palavras, ideias, tanta vez sem cor. Coloco-as ao pesçoço, são colares desbotados, anelados de palavras, pendem como grãos que se esfarelam quando lhes toco.
Ao frio da vida evoco as imagens ternas e quentes das folhas altivas das acácias, lá longe, perdidas em qualquer mapa mal definido, coordenadas de uma bússola com defeito.
São as vozes dos antepassados, os seus valores que oiço como sons cósmicos, poeira de tudo o que somos feitos, luz de estrelas, ossos, pele e músculos, bocas, narizes e orelhas, as palavras são braços e das suas extremidades nascem mãos.
Olho as mãos e são a uma e outra vez as minhas, conheço-lhes as linhas, são sulcos de carne, estiveram na terra, escreveram linhas e círculos.
Afasto-me... de longe observo... na areia, como um bosquejo, está escrita uma só palavra:

P A Z


A pintura é de Paula Rego e chama-se " the blue fairy whispers to pinocchio"

9 comentários:

Anónimo disse...

Qual Kent?...

Shaktí disse...

gil: Kant, o erro ortográfico já está corrigido. Trata-se óbviamente de Immanuel Kant ou Emanuel Kant filósofo prussiano, representante do Iluminismo. Obrigada por me teres alertado para a incorrecção.

VF disse...

Bravo!

A repetir mais vezes com a calma necessária!

Shaktí disse...

vitor: obrigada pela gentileza.

Anónimo disse...

Pena que a chuva rapidamente leve essa e outras palavras de esperança...

Linda prosa, Shaktí, com os cumprimentos de um antigo barreirense.

Shaktí disse...

Refeiro perfumado: a chuva também é uma vantagem quando a terra está sequiosa. Como a alma, a Terra está carente de esperança e prefiro continuar a pensar que é a última que morre.
Saudações do Barreiro para ti.

Anónimo disse...

texto muito bom! Mesmo!
antope

Anónimo disse...

Gostei!!!!! Lindo!!!!!

Shaktí disse...

fernando: obrigada
anónimo: obrigada também