As noites são cheias de profundos mistérios, são ora quentes ora frias, conforme nos dispomos a olhar as estrelas em estado de reflexão.
No passado apenas as estrelas e pouco mais iluminavam os passos dos homens e das mulheres que se dispunham a caminhar juntos.
Os passos de uns e outros entrecruzavam-se e, aqui e ali encaixavam-se mesmo.
Não digo que não o façam agora, mas as tentativas são mais vãs, ou mais imprecisas.
Assistimos à era do aborto de Deus, que não deixamos de ser todos, apesar de acreditarmos termos sido feitos à sua imagem e semelhança.
A religião e as crenças dos homens são discutíveis e discutidas pelos próprios, bem como os seus propósitos orientadores.
Contudo deparo-me com outras crenças, talvés igualmente cimentadas por esses mesmos homens, pela Humanidade, no seu todo.
Não só as pessoas se afastaram dos seus postulados religiosos, sejam quais forem, como são vistas vezes sem conta a negarem a imagem dos dogmas que os viram nascer.
Ajudar alguém desconhecido, alguém que pede nas ruas, desventuradamente, tão longe e tão próximo de nós todos, parece apenas provocar a repulsa ou a indiferença nos seus congéneres de raça.
Não acredito que quem trabalha e se esforça horas a fio nos seus empregos, deva ter de ser obrigado a sustentar a imensa urbe cheia de mendigos, mas acredito igualmente que não dói dar.
Seja sangue, seja comida, sejam algumas moedas que podemos ter na carteira ou nos bolsos, não digo a mais, mas dispensáveis.
Gosto de olhar os mendigos nos olhos, como olho todos os outros seres humanos, quer quando falo com eles quer quando falam comigo, porque estão lá e não apenas porque são o produto daquilo que a sociedade excreta. Mesmo que seja para lhes dizer não.
São muitas vezes o resultado atróz do nosso excesso de bem estar transformado em adormecida insensibilidade de quem tem, de quem compra, de quem entra numa loja e pode sair de lá com um saco cheio de algo tantas vezes inútil.
Os mendigos da nossa cidade vieram para ficar, estendem-nos a mão de manhã à noite, mas não nos dão os sulcos do caminho dos seus pés para experienciarmos a sua tragédia pessoal.
Da mesma forma não lhes podemos ensinar o caminho do quente dos lençóis lavados das nossas camas, porque essa é a nossa vivência, mas também já foi a deles, de muitos deles.
Por detrás dos olhos secos dos mendigos pendurados nas sete colinas de Lisboa, estão homens e estão mulheres, ainda crianças alguns deles, demasiados deles, e se governos e instituições não podem ou não querem fazer o que devem, compete-nos a nós, felizes comtemplados de cear na mesa opulenta dos tempos modernos, olhar por eles e para eles.
E dar, nem que seja apenas uma vez de longe a longe, ofertar um naco, ínfimo é certo, sem a pretenção de ser a salvação daquela alma, mas resgatá-lo, naquele preciso instante, em que as mãos se estendem em uníssono, um a dar o outro a receber, salvá-lo da imensa ignomínia do esquecimento, mesmo que por segundos.
As crenças tatuadas em forma de números, preços, cifrões, pode ser a crença dos dias que correm e não a da assitência aos menos afortunados, entre outras, porém o verdadeiro prazer que apenas se encontra no eterno da partilha, pois apenas o que é partilhado é eterno, será digno de pertencer à egrégora do colectivo universal.
Isto significa que os males de todos pertencem ao todo, essa é a verdadeira globalização e moramos todos numa aldeia cheia de sofredores e de penosas dores e não pensemos que vamos ter, em breve, a visita do Messias para jantar.
Na realidade estamos todos sentados num imenso banquete de mendigos.