... na quinta feira de tarde.
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Faz parte das minhas tarefas receber manuscritos na editora. Fiquem tranquilos, não os leio, não passa por mim a decisão de os publicar ou rejeitar, mas atendo as pessoas que cheias de anseios e esperanças, com talento ou sem ele, querem ver as suas obras publicadas.
Normalmente são pessoas chatas e aborrecidas mas, de quando em vez, alguma merece uma maior atenção e até carinho, não obstante para elas eu significar o mesmo que Deus para as cigarras, ou seja, rigorosamente nada.
Sandra contacta a editora porque quer submeter o seu manuscrito à apreciação para averiguar se existem possibilidades de publicação. Estive ao telefone com ela todo o tempo disponível que pude arranjar. E com prazer o fiz.
Sandra nasceu com o nome de João e é um ser em transformação, provavelmente tão mulher por dentro como eu o sou por fora, apenas não lhe calhou em sorte o género que deseja e arrasta, com pesar, uma existência num corpo masculino que a atormenta e castra.
Não é vulgar eu dar demasiada importância a quem ambiciona publicar um livro, afinal convivo com tantos e com tanto gosto. Contudo muitas são as histórias caricatas de autores conceituados que toda a gente, ou quase, lê e se deslumbra e na verdade são pessoas egocêntricas e vaidosas e sem o mínimo de consideração pelo seu semelhante. Outros, inversamente, são tímidos e mesmo vendendo livros como se vendem farturas em barraca de feira no dia da procissão, mantêm um ar sereno e cheio de respeito pelo enorme trabalho de bastidores que envolve a promoção, divulgação e publicação de um livro.
Por isso falar com Sandra foi tão bom. Alguém que assume a sua transexualidade e diz que sofre e quer contar porquê acreditando que, ao divulgar a sua experiência, poderá ajudar alguém que, como ela, luta todos os dias da sua vida, todos os minutos, todos os segundos, para ser olhada como um ser humano nomal, como eu e como tu.
Dei-lhe toda a atenção que mereceu porque me tratou como gente, disse-lhe tudo o que me ocorreu que a pudesse ajudar a tornar o seu livro atractivo aos olhos que quem o vai analisar, dei-lhe todos os conselhos que me lembrei e, por mim, desejei ver o seu manuscrito publicado fosse em que editora fosse.
Dirigi-me a ela usando o nome pelo qual ela vai passar a ser conhecida após o processo, que me explicou com detalhe e muita paciencia, ficar concluído, porque ela se dirigiu a mim chamando-me pelo meu nome próprio, que tratou logo de saber, mesmo tendo conhecimento que em nada poderia influenciar os trâmites internos de publicação. Tratou-me com respeito e consideração, foi humana e entendeu as minhas limitações profissionais e com isso obrigou-me a despir a minha couraça.
Ofertou-me quase uma hora de imenso calor humano e de uma vivência, de longe, bem mais complicada que a minha.
Quase senti vergonha de andar sempre a caminho do meu muro das lamentações.
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Não te chamas Sandra nem nasceste João, como aqui está escrito, porque me pediste que fosse discreta e que não esquecesse a regra da confidencialidade, mas não consegui deixar de considerar importante que a tua história fosse contada e que a tua àrdua luta e enorme força de viver visse a luz do dia sob a forma escrita como tanto ambicionas.
Mesmo sabendo que não me vais ler não quis deixar de te prestar tributo como tua irmã, não em género nem de sangue, mas de espírito.
Tens razão o filme Transamérica é importante ser visto e entendido.
Boa sorte para a conclusão do curso de Filosofia e para a publicação dos teus textos e...muito obrigada por existires.
Agradecimento: permiti-me "roubar" mais uma foto do site 1000 imagens. Desta feita a foto é de Victor Melo e intitula-se "Forças"